sexta-feira, 27 de março de 2015

LER mal os sinais

O novo número da LER apareceu-me de surpresa num post de alguém no Facebook, esse antro de ociosos e desmiolados. O blogue da revista, ainda que indicado a vermelho logo na página 1 como sendo um local de «informação diária sobre edição», não é actualizado desde 21 de Novembro de 2014. A página de Facebook (sim, o Francisco deixou que alguém criasse uma), ontem actualizada, estava silenciosa desde 5 de Dezembro (silêncio, aliás, apenas interrompido para colocar a capa da edição anterior).
Confesso que imaginava ter-se a revista finado. Tinha-o referido com tristeza há dois ou três dias. Folheá-la agora conforta-me. Cheirá-la inebria-me um pouco, como o odor de uma lareira ao passar na rua, com a sua promessa de aconchego e histórias ao serão. Mas a inesperada existência física da revista, mesmo que surpreendentemente impregnada de viço juvenil nos seus “Manifestos” e rubricas afins, não afastou de todo a sombra instalada pela sua ausência electrónica. Agradeço, bem entendido, que a LER seja uma revista impressa, e não vejo necessidade de que os seus editores se ocupem da tal «informação diária sobre edição». Mas dado que hoje somos também, queiramos ou não, seres online, impõem-se uns regulares sinais vitais (ainda que em ritmo de urso hibernando) — ou, para evitar equívocos e agoiros, a eliminação sumária das páginas na Internet. Se é para estarmos de coração na mão em cada final de trimestre, ao menos que não tenhamos capas antigas a assombrar-nos as espreitadelas ansiosas aos sites.

Benefícios do agendamento de posts

Uma das vantagens de ter escrito livros que permanecem inéditos é esta possibilidade de ir publicando excertos no defeso, alimentando com eles o blogue, agendando posts como se o escritor ainda estivesse vivo (quem o garante?). Além disso, o leitor pode encontrar certo prazer lúdico em coleccionar os excertos e tentar uma reconstrução da obra, a ver se lhe encontra sentido. Etiquetas como Aranda ou Hotel do Norte, havendo paciência, podem encher-se de um número suficiente de excertos para que, montando-os laboriosamente como bobinas de película, o leitor logre ufano a sua reader’s cut.

Claro, há também a possibilidade de, no termo da montagem ou cansado de tentativas, o leitor descobrir que a obra não tem afinal, digamos, ponta por onde se lhe pegue. Mas nessa altura não é certo que o autor ainda esteja aí para sofrer o choque.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Os primeiros trovões em Aranda

«O casal chegou trazendo um filho pequeno pela mão. A mulher era naturalmente bonita mas a amargura ou o tédio, ou talvez o ódio, pesavam-lhe no rosto, puxando os cantos da boca para baixo e com eles as pálpebras, um pouco vermelhas, de um vermelho escuro, a caminhar para o roxo. Não parecia ter estado a chorar, não era isso, embora também não estivesse contente. Não eram, de qualquer modo, olhos violentados, ninguém tinha desferido neles golpes físicos — mas havia ali sofrimento.
O homem, provavelmente da mesma idade dela, no início dos trinta, tinha bom aspecto, mas um bom aspecto suspeito. A barba, ainda que catalogável, inserida num protótipo comum a uma boa parte dos homens ocidentais daquela geração, estava demasiado crescida naquele rosto, era máscula em excesso. Depois havia a tentativa dele de parecer responsável com a criança (acorria sempre mais tarde do que a mãe) e de liderar a visita à esplanada, antecipando o pedido da companheira, que ela de imediato corrigiu por não corresponder de todo ao seu apetite.
Na mesa ao lado havia um advogado e o seu cliente. Ele tinha uma risca perfeita no cabelo, à direita, e o cliente desgrenhava-se, passando mãos sapudas e transpiradas pela cabeça encaracolada. O advogado era um Cyrano, ditando frases que o cliente repetia ao telemóvel. Não era um caso de divórcio doloroso, ou a tentativa de o evitar: aquele advogado era demasiado hesitante para enfrentar a ira de uma mulher e ao cliente de mãos gordas não tinha sido dada a possibilidade de amar, pelo menos de o fazer de uma forma romântica, mesmo que com poemas e serenatas sugeridos.
Eram certamente dívidas, acordos mal consumados, contratos por cumprir. O advogado mostrava-se indignado com a argumentação contrária que vinha pelo telemóvel do seu constituinte e tentava ser mais implacável nas instruções que lhe transmitia. Em momento nenhum pegou ele próprio no aparelho, pelo que teve tempo de reparar no desamparo da mulher que acabara de se sentar na mesa ao lado, esquecendo por minutos (ou sempre) o desamparo que oprimia o seu próprio cliente.

Uma segunda mulher subiu à cena, vinda da parte inferior do jardim. O chão da esplanada estava pavimentado em pequenos cubos de granito, mal aparelhados, e ela vinha com as cautelas que têm todas as mulheres que usam saltos altos e não querem vê-los entalados nas juntas traiçoeiras da calçada. Caminhava de pernas flectidas, ombros levantados, tentando usar ainda menos os calcanhares, como em tempos antigos faziam alguns dos que ousavam atravessar descalços as fogueiras de São João. Sentou-se do outro lado do advogado, contribuindo para a desorientação dele, já dividido entre o cliente à sua frente e a mãe amarga à esquerda.
Esta nova mulher (com tatuagens à vista e uma respeitável massa corporal que a faziam parecer um nórdico apreciador de cerveja) tinha o que se diria um toque oriental, com o cabelo muito escuro penteado para trás e preso na nuca. Mas depois de melhor observação, o que se via era alguém que desejava a toda a força e com um método artesanal disfarçar a decadência do rosto. Talvez ela não acreditasse nos cremes ou não tivesse dinheiro para plásticas. Ou talvez aquele expediente se destinasse apenas a evitar ingenuamente que o duplo queixo ficasse ainda mais saliente. Fosse como fosse, o seu rosto, as peles e as rugas, tudo estava repuxado pelo cabelo, bem preso atrás, dando aos olhos uma obliquidade asiática, de lutador de sumo, e às maçãs do rosto e ao maxilar superior um ar de roedor. No entanto, o artifício não vencia a gravidade que lhe reclamava a ignóbil prega debaixo do queixo.

A terceira mulher a chegar não tinha nenhum destes problemas, embora nos seus dezoito anos se achasse certamente repositório de muitos outros e mais graves. Tinha uma ponta de acne e os dois rapazes que a acompanhavam não faziam jus à sua beleza entediada (mais do que dramática ou trágica) como costuma ser a de muitas mulheres jovens. Levantou-se logo depois de se ter sentado e reconhecido alguém numa mesa mais longínqua. Avançou para ali com passo destemido, mas calculista. Havia três outros rapazes naquela mesa do canto e só um era seu conhecido. Os olhos varriam a mesa, tanto para se certificar de que não conhecia de facto nenhum dos outros dois como para os avaliar, avaliar o seu potencial reprodutor, ainda que a reprodução, o fim último, não fosse exactamente o que desejava.
O rapaz conhecido estava de costas, o que facilitou a actuação. Pôde afagar-lhe o cabelo na nuca — manipuladoramente, como ela sabia que os rapazes gostavam, gatinhos imbecis, sentindo-se por segundos ingénuos os únicos destinatários do afecto de uma rapariga por quem vertiam saliva várias vezes ao dia —, pôde afagar-lhe o cabelo na nuca e ao mesmo tempo observar tacticamente o resto da mesa. Pediu um cigarro, fora essa a desculpa para deixar o seu próprio grupo. O rapaz conhecido apressou-se a oferecer um Marlboro, mas ela soube distrair-se o suficiente para em vez disso aceitar um dos cigarros que os outros dois estendiam.

Havia ainda mais uma mesa, onde dois homens avantajados e gabarolas falavam de sexo e violência, de ciúmes e vinganças, de conquistas e sucessos em rixas, mas nessa mesa Inês preferiu não se deter. (Ainda que talvez aquela fosse a mesa que mais fielmente resumia tudo.) Ajudou-a o facto de a encenação estar a atingir o momento alto: a dada altura, a esposa amarga (ou a mãe amarga, talvez o das barbas não fosse seu marido nem pai da criança, não havia nele determinação ou acomodamento suficiente no que concernia às duas relações) resolveu desistir. O filho que esbracejasse e derrubasse as cadeiras e a louça; o das barbas que continuasse inútil e ele próprio aborrecido com a relação; o advogado que a espreitasse de todos os ângulos que pudesse; e os outros, os adolescentes e a mulher zangada com a idade e as pregas da carne e os tipos gabarolas, que viessem no fim acusá-la de estupidez por se ter deixado parir aquele filho. Encostou-se na cadeira e deslizou por ali abaixo, a saia subindo pelas coxas, ela imergindo num mundo outro.
Talvez por obediência a um código tribal, a mulher amarga e o acompanhante vestiam de escuro, exibiam uma espécie de viuvez mútua, que a saia curta dela não resgatava. Por isso, aquele triângulo claro, quando surgiu entre as pernas abertas, desleixadas, desistentes, era eloquência pura: umas cuecas festivas, alegres, com um padrão de formas zombeteiras, vermelhas e amarelas, sobre um fundo branco, imaculado.
Inês não pôde deixar de considerar aquilo um novo grito do Ipiranga — ou um pedido de resgate. Aquelas cuecas naquele casal. Desde o início desconfiara que, primeiro, o das barbas não era pai da criança, segundo, chegara com pouca convicção à relação (e ansioso por ir andando) e, terceiro, a mãe amarga tinha ainda menos convicção naquela relação e não estava segura de que havia alguma espécie de realização pessoal na magna questão da maternidade. E, quarto (afinal havia uma quarta dedução), a menos que o das barbas baixasse naquele momento as calças para mostrar idêntica escolha no que se referia à roupa interior, ela apostaria que entre aqueles dois não tinha havido sexo (ou intimidade) nos últimos tempos. Umas cuecas coloridas eram, naquele agregado sombrio, mais do que segredo ou dissidência camuflada — eram traição. Ou talvez só desprezo.

Ela estava agora a ver como se arranjaria o advogado para espreitar as coxas da mulher amarga. Do seu lugar, o penteadinho não conseguiria desfrutar o panorama, mas tinha as antenas suficientemente alerta para se dar conta que havia um panorama para desfrutar. Talvez se levantasse para ir ao balcão pagar os cafés — esse tipo de investimento num cliente ele achava que podia fazer —, abrindo bem os olhos no regresso. E a mulher das tatuagens e do cabelo preso? E a adolescente? E ela própria? O que deveriam pensar as mulheres ali presentes daquela exibição de intimidade? O que deveria ela, Inês, pensar? Bem, não haveria escândalo, isso era certo. A não ser que fizesse o que lhe apetecia, que era afastar o incompetente das barbas, segurar na criança (era verdade? o instinto maternal era um facto científico?) e afagar o cabelo negro da mãe amarga.

Não fez nada disso. Bebeu o resto do café e chamou o empregado. Ao longe ouviram-se os primeiros trovões desde que chegara a Aranda.»

Inês, in Aranda

quarta-feira, 18 de março de 2015

Gostava do tic tic tic tic da tesoura

«Aparava o cabelo de quinze em quinze dias e escanhoava a barba todas as manhãs, bem cedo. Por vezes, se ia haver baile à noite no Casino, ou algum sarau de nota no Hotel, passava novamente ao final da tarde na barbearia para que lhe fosse devolvida a face macia. Não adivinhava quando o destino lhe iria conceder a possibilidade de aproximar a cara ao rosto de uma mulher, mas ia querer estar prevenido. O bigode, encostado ao lábio superior e cortado à escovinha, era também alvo do seu zelo e da dedicação profissional do barbeiro. Nunca lhe passou pela ideia rapá-lo, como alguns faziam, embora em certas alturas se pusesse ao espelho a imaginar o que aconteceria na hora de beijar. Pelo sim, pelo não, escolhera um modelo curto e mantinha-o sob vigilância da tesoura.
A natureza favorecera-o, cedo deixara de ser imberbe e a vasta pilosidade tinha crescimento rápido. Isto causava os seus incómodos, perdia muito tempo no barbeiro. Mas sentia-se viril e, como sabia escolher bem o artífice, raramente dava por perdidas as horas dedicadas ao apuro da fácies.
Os outros homens da família tratavam do aprumo recorrendo aos serviços que o Hotel do Norte proporcionava. Ele não lhes seguia as pisadas, não nesta matéria. Descobrira muito cedo a barbearia na saída norte do Parque, ainda pela mão do avô materno, que tinha as suas excentricidades e gostava de confraternizar com a população local. Mesmo que com o crescimento viesse a distanciar-se das ousadias do avô, não mais esqueceu o caminho daquele pequeno estabelecimento de uma só cadeira, e logo que teve autonomia decidiu que trataria ali do aspecto.
Não saberia explicar por que e não se questionava. No Hotel havia talvez uma partilha excessiva de intimidades, eram aviados aos três em frente ao mesmo espelho corrido e nas cadeiras de espera ficavam todos os outros a olhar. Ali, na barbearia do bairro, havia aspectos mais deploráveis, claro: a clientela não era selecta, acorriam também agricultores e operários, com pescoços surrados e doses de piolhos. Mas ele não conhecia ninguém e os outros, pelo contrário, sabiam muito bem quem ele era, cedendo a vez, desfazendo-se em vénias e ademanes, mantendo distância e guardando silêncio sempre que ele entrava e abanava o rosto com o chapéu, para afastar os cheiros.
Nunca confraternizava com os nativos. A barbearia esvaziava-se, ainda que ele pressentisse através da porta os olhares tímidos e reverentes do outro lado da estrada. Aguardava que o barbeiro espanasse com esmero a cadeira e, mal se sentava, lembrava-lhe a necessidade de passar os instrumentos pelo álcool uma segunda vez. Depois relaxava e entregava-se às mãos compridas, ossudas e experientes, sentindo um enlevo que o tornava dócil, manietável, paciente. Regia com uma ponta de desconsolo à notícia de que o serviço estava pronto e encontrava sempre um reparo a fazer que lhe permitia um encore na prestação do mestre.
Gostava do tic tic tic tic da tesoura no ar à volta da sua cabeça, das poses do barbeiro, pernas flectidas, braços levantados, a olhar a obra de diversos ângulos, directamente e no espelho. Por cada estocada no cabelo a tesoura repetia meia dúzia no vácuo, em preparativos sonoros, aquecimento de atleta antes do salto. Ele aprovava este método perdulário, jamais censurava o desperdício de energia e a lentidão, entregava-se-lhe. O espanador no rosto e no pescoço a seguir ao corte causava-lhe volúpia, e depois abria com prazer os braços para que lhe fosse escovado o fato.
Tinha vinte e seis anos e nunca beijara uma mulher.»

in Hotel do Norte (2009)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Lugar de saudade

Questionado sobre que sítio gostara mais de visitar recentemente, pensei em diversos destinos ibéricos e europeus, mas depois passou uma fotografia de uma country house no ecrã e senti uma nostalgia dilacerante de uma cidadezinha que nunca visitei no País de Gales. Os Velhos Diabos, prazeroso, nem está no meu top de leituras, mas lembrar-me do seu cenário foi um sinal eloquente de como os lugares literários disputam aos lugares reais um espaço no meu coração. E de como a literatura se me apresenta actualmente como um radioso, feliz — e sobretudo distante — lugar de saudade.

Existencialismo automóvel

Estou a envelhecer. Antes acordava a meio da noite a questionar-me se chegara a estacionar o carro ou se simplesmente o parara no meio da rua e subira assobiando as escadas de casa. Hoje espreito frequentes noites da varanda se o carro ficou estacionado numa perpendicular perfeita ao lancil e com distâncias cívicas aos automóveis dos vizinhos.

Pensando bem, talvez isto não seja envelhecer, talvez seja o legado merkeliano a frutificar em mim. Se um destes dias acordar com o ímpeto irrevogável de trocar o meu ineficiente veículo meridional por um produtivo BMW é porque a doutrinação germano-passista surtiu efeito. E se tiver dinheiro para o fazer é porque afinal a troika foi uma boa ideia.

Mas se, como é mais certo, amanhã acordar a rir-me por ter vãs preocupações nocturnas com o parqueamento de uma viatura que o banco levou, fico feliz. É sinal de que no meio da desgraça não perdi o humor.
Embora esteja a envelhecer.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Dhafer Youssef ou a reconciliação da espécie


Há três anos havia lua cheia e Dhafer Youssef actuava em Sines (lembras-te?). Nós estávamos no mesmo paralelo, mas não mesmo mesmo meridiano — e contudo parámos o carro na berma alentejana, saímos para o calor da noite com o rádio no máximo e dançámos no alcatrão, inquietando a bicheza que esbugalhava um olho de cada vez nos prumos das cercas ao redor. Apesar da proximidade mediterrânica e do Sete Sóis, Sete Luas, que também já visitáramos e havíamos de visitar, não nos ocorria exactamente a celebração de um melting pot musical ou cultural, pensávamos apenas no prazer de ser Verão e estarmos vivos a Sul. Mas calhava de Youssef — o tunisino, o francês, às vezes vienense, o terráqueo, em suma — ser versado na Teoria das Cordas e explicar o Universo dedilhando o seu oud ou tensionando incrivelmente as fibras da laringe. Por isso havia Harmonia e o jazz era o seu esperanto — e nós estávamos afinal sintonizados com o Cosmos, reconciliados com a espécie. Tínhamos bebido um copo ou outro, é certo.

100 Homens, 100 Preconceitos

A campanha "100 Homens, Sem Preconceitos – Um Passo pela Igualdade" (que fotografou cem homens em saltos altos) é decerto bem-intencionada, mas é simultaneamente estúpida, porque assenta num estereótipo — ou seja, num preconceito, dos tais que tenciona combater.
Imaginem que a Máxima, a revista promotora da campanha, convidava cem homens a experimentarem enfaixar as suas extremidades inferiores como durante dez séculos muitas chinesas tiveram de fazer em nome da “beleza”. Com “pés de lótus”, como com saltos altos, a revista haveria de registar o mesmo género imbecil de comentários masculinos — «isto é muito difícil!» ou «agora damos ainda mais valor às mulheres!» — e as mulheres estariam igualmente mal defendidas. E mal definidas.
A maior dificuldade das mulheres não é caminhar em stilettos; já insistir em definir a feminilidade pela forma aguda do tamanco não facilita certamente, quotidianamente, a vida a muitas delas.

1. O zelota

Os que minimizam a importância dos actos de Passos Coelho fogem (deliberadamente ou não; cândida ou perversamente) ao essencial: falamos do maior moralista que governou Portugal depois de Salazar e Marcello e, mais importante, que governou e decidiu sobre a vida dos concidadãos com base nessa moralidade instrumentalizada. A desfaçatez e a hipocrisia não são, neste caso, pecadilhos que apenas mostram que Passos, tendo errado, é humano. Pelo contrário: dada a centralidade da moral no seu discurso, mostram que PPC é um pastor que prega mas não acredita no que prega. Repete a ladainha apenas para perpetuar a instituição. Está portanto ao serviço dos interesses da instituição e não dos da comunidade. E não é difícil perceber o que é a instituição para Passos Coelho.

2. O cordeiro de Deus

É tão absolutamente idiota desculpar Passos com os erros maiores de Sócrates que chega a dar um novo sentido à Páscoa que se aproxima: o ex-PM foi preso para expiar os pecados do mundo, particularmente os de Passos Coelho? Depois de crucificado o messias da Covilhã (que, de resto, acreditava sê-lo, como todos os mitómanos), basta ao Coelho pascal a confissão e a compunção para que uma quantidade assustadora de pensadores o mande em paz com duas ou três inofensivas ave-marias por penitência.

3. O ridículo

Comparados os casos, ter Passos como PM equivale a ter Relvas como Ministro da Educação. Ridículo, não seria?

Um café no Agueiros

Juro que queria ter ido a Felgueiras esta semana. Nem toda a gente ali tem culpa do culto fatimida que durante anos vigorou no concelho, e de resto essa é uma religião partilhada pela maioria dos compatriotas, com uma ou outra variante regional no que ao orago diz respeito. A cidade tem um teatro bonito restaurado com franco optimismo há poucos anos e há nas redondezas uns cafés simpáticos. Não tanto pela decoração, mas pelo serviço. O Agueiros, por exemplo. Ah, um cimbalino, uma água das Pedras e um boletim do Euromilhões no Agueiros, em Felgueiras. Fica-se tão bem disposto que apetece ir logo pagar 20 milhões de impostos e desaparecer por uma década ou duas no sigilo bancário. Isso e substituir a foto de perfil no Facebook por um boneco das caldas.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Lugares de ficção


«Diz para si própria que é impossível, e no entanto o odor entra-lhe pelas narinas como se os cavalos ainda ali estivessem. Um cheiro a fezes que não enoja, porque emanado de seres belos, esbeltos, nobres. Merda dos deuses — não das suas montadas. Na altura não pensou estas coisas (o que pensaria então?), é agora que esta parte do passado lhe parece poética.
A vegetação cresceu, mas a sebe que delimitava o campo de saltos ainda sobressai, com alguns troços secos e a parte viva muito irregular, informe, a clamar pelas tesouras do mestre jardineiro. É como se a pátina de Roma tivesse caído também sobre aquele local, dando-lhe ares de império derrotado. As velhas boxes, com as suas portinholas onde assomavam os pescoços equinos, dificilmente se vêem por detrás de uma barreira de árvores novas e antigas e de ervas que dão pela cintura. A tribuna do júri, virada a poente, mostra-se como o casebre que talvez sempre tenha sido, flanqueada por três vacilantes mastros de bandeira. Do outro lado, as bancadas de cimento conservam as telhas da cobertura e as asnas de madeira (assentes em pilarzinhos de ferro forjado ao estilo Arte Nova), mas perderam as divisórias de pinho que, na fila da frente, compartimentavam e exibiam a aristocracia em lotes de quatro cadeiras e uma mesinha, sob guarda-sóis às riscas coloridas.
A barragem (seria este o nome? talvez poço) ainda existe, no meio da erva: uma concavidade larga de cimento, rasa — menos do que meia cana; com um raio bastante maior do que o de uma roda de carroça ou charrette —, que antigamente se enchia de água e assustava os cavalos mais do que os outros obstáculos, entretanto desaparecidos. Também existe a ruína da Casa de Chá.
Ao longe ouve-se o trovão. Podia ser um bombardeamento, o inimigo às portas, artilharia motorizada aproximando-se ameaçadoramente do império em declínio. Mas é apenas uma trovoada de Verão. As primeiras gotas de chuva volatizam-se no momento em que são percebidas na pele. O céu não parece ter nuvens capazes de fazer chover.
Esquecida a um canto das bancadas, uma boneca de porcelana rosada. Com o seu vestidinho azul debruado a rendas brancas e um chapéu de amplas abas, é um vestígio surpreendente, improvável e desmembrado. O braço esquerdo está caído ao lado do corpo, que por sua vez está rachado, revelando um interior oco. A boneca encosta-se a um dos postes de ferro que sustentam o telhado e observa melancolicamente alguma das provas inesquecíveis ou imagináveis do velho concurso hípico.
Ela segura a boneca pela cintura e o cheiro a excrementos regressa. Não o tropel dos cascos, o rumor da multidão (e a sineta, a voz de megafone do júri, os gritos de incitamento dos cavaleiros, o estalar do pingalim, o resfolegar dos animais). Não. Apenas o odor, como se nele se concentrassem todas as experiências dos sentidos e residisse nele toda a memória possível.
Ah, inebriar-se daquilo!
Levanta o nariz ao vento como um predador e toma o caminho das cavalariças sob a bancada. As portas de madeira com frinchas entre as tábuas filtram os raios de sol, que desenham uma grelha no chão de terra batida. Rangem quando ela as abre e tenta adaptar os olhos à penumbra. Um corredor atravessa todo o edifício e dos dois lados dele sucedem-se as baias.
— Pensei que não viesses — diz uma voz ao fundo.
— E por que não haveria de vir? — retorque ela.
— Não sei, poderia faltar-te a coragem. — A voz faz uma pausa. — Estás bonita, gosto desse vestido.
— Galanteios. Mal me arranjei.
— É cedo? Talvez pudéssemos ter marcado para mais tarde.
— Não, não. Quanto antes melhor.
— Então, diz-me: como fazemos?
— Não pensei nisso — diz ela, um pouco desconcertada. — Achei que irias tratar dos pormenores.
— E tratei, descansa. Só quis deixar-te tomar a iniciativa, sou um cavalheiro.
— Sim, o melhor deles. Tanto se me dá.
A boneca de porcelana dirige-lhe um olhar inquiridor e ela encolhe os ombros.
— Não vieste por acaso a cavalo? — pergunta ela.
— A cavalo? — ri-se a voz. — Que ideia mais estranha. Gostarias que o tivesse feito?
— Não, não é isso, apenas me pareceu que cheirava a cavalo, só isso.
— Agora ofendeste-me: eu lavo-me — protesta a voz com falsa indignação.
A boneca de porcelana parece ter um risinho de cortesã.
— Oh, esquece. Podemos visitar a Casa de Chá antes?
— Claro, as decisões são tuas.»

Cláudia in Aranda

quinta-feira, 5 de março de 2015

Um rodado músico caribenho foi para os Estados Unidos para ser famoso e acabou triste a trabalhar de segurança para sobreviver. Eu abdico já de toda a fama se puder ir sobreviver a tocar maracas anónimas no Caribe.