Acontece
o mesmo com a evocação do mundo rural. A singeleza, os bons sentimentos, a
solidariedade, o ar puro, a honestidade, a franqueza, os dias a decorrer ao
ritmo natural, a confiança, o amanhecer e o pôr-do-sol, o sol a pino e a três
quartos, e a chuva purificadora e a neve imaculada e o murmúrio do vento nas searas de trigo ou no veludo das parras em Agosto ou nas coloridas folhas
outonais. Nunca a lama e as frieiras e o uivo sinistro e cortante da nortada
nas frinchas das paredes e do tecto e os alguidares a apanharem as pingas e os
cobertores da cama inteiriçados pela geada (e os percevejos e os ratos) e os
pés enfiados em sacos de plástico para impermeabilizar as botas furadas e as
camisolas sempre curtas ou rotas ou insuficientes, os casacos largos, feios, constrangedores,
igualmente rotos ou sujos, ferrete da condição inferior; nunca a estreiteza de
horizontes, a rédea curta da ambição, a renúncia do sonho, o atrofio da
vocação. Ou tudo isto, sim, tudo isto quando precisamos de azul para o oiro da
retórica.
O
mundo rural, se invocado de memória, é o paraíso na terra — apenas um pouco condimentado,
para lhe requintar o sabor. Não se percebe como as pessoas, aqui como ao
redor do mundo, teimam em abandoná-lo. Mesmo os que assim idílico o recordam, ameaçando
poeticamente um regresso às origens que, na verdade, não querem corporizar, a não ser no bom tempo ou num monte
alentejano com piscina, num financiado turismo rural com piscina, no velho
solar recuperado, melhorado — e dotado de piscina.
Usando
um apelo muito em voga, o mundo rural e a maior parte das infâncias precisam de um Correio da Manhã para nos revelar
que o passado, como a índole lusitana, é menos bondoso do que gostamos de crer.
É apenas lindo na nossa memória facciosa e em admiráveis páginas de literatura.
Nas melhores destas, a beleza que experimentamos é intrínseca à obra, não ao que
ela ficciona. É por isso que quando queremos mesmo sentir o passado devemos talvez ler relatórios, estatísticas,
correspondência e diários de cidadãos comuns, inventários, registos — e não
sentarmo-nos melancolicamente a recordar ou a ler romances.
Sem comentários:
Enviar um comentário